À pequenez dos números não se subtrai o enaltecimento dos princípios. E foi no Rossio que, na figura da Assembleia Popular soberana, se semeou e cultivou o gérmen do ideal democrático cujos princípios foram sequestrados por quem vai logrando convencer-nos que a via representativa é a via inevitável que temos que trilhar.
Foi sem organizadores, deputados e demais representantes ou mediadores que a primeira Assembleia Popular se realizou numa das calçadas da Avenida da Liberdade, numa noite cálida de Maio. Dela emanaram decisões cujo único vínculo era a consciência de cada um dos participantes – decidiu-se que no dia seguinte se rumaria ao Rossio, procurando emular aquilo que se ia fomentando do outro lado da península.
Durante duas semanas, foi sobretudo a glória da democracia directa que imperou no Rossio. As Assembleias Populares foram convocadas e reunidas dia após dia, e para elas afluíram aqueles cujos interesses e problemáticas comuns ditavam uma solução popular. Muitos afluíram em nome do seu desespero ante a barreira inamovível que separa representantes e representados, cuja legitimidade se funda cada vez mais somente no voto, no mandato da plebe acrítica que acata um sistema eleitoral defeituoso e que não serve os interesses do povo.
Durante duas semanas, cada um de nós se libertou da alienação fomentada pelas assembleias representativas, em plena crise de legitimidade, para aprender o que é o processo democrático. Convergimos no Rossio para, apesar da alienação, aprendermos o que é a democracia quando ela se liberta dos moldes do interesse político-económico.
Demonstrámos que o processo abstracto que é a tomada de decisão democrática pode ocorrer quando o povo decide que deve ocorrer – seja na câmara sumptuosa do Parlamento ou na calçada dura do Rossio. Demonstrámos que, contrariamente ao que vigora na imaginação colectiva, a democracia não é propriedade nem pode ser resumida à opinião decretada pelo dono do Diário da República.
Demonstrámos que podem ser criados centros de poder alternativo, concorrentes ou coadjuvantes ao poder legislativo.
Demonstrámos que resistimos, mesmo perante a supressão em forma tentada da pequena democracia que temos vindo a fomentar sobre a calçada da Praça D. Pedro IV. Demonstrámos que a nossa democracia é resiliente, e não é apenas mais um fenómeno de estio.
Podemos não gostar daquilo que é dito na Praça do Rossio. Podemos não gostar de uma única intervenção. Mas não podemos ignorar que a forma subjacente ao conteúdo – a forma de decisão democrática – é aquilo que realmente interessa. E se não gostamos, temos a oportunidade de intervir de modo a modificar a qualidade do debate. Afinal, a qualidade da democracia constrói-se através da crítica e da participação.